21/02/2017

Entrevista | A adoção de Oriza, uma jovem com autismo

Para a maioria dos pais e mães de pessoas com autismo, a notícia do diagnóstico pode chegar de surpresa. Mas com o casal Bartira de Oliveira Borba e Thiago Fonseca Pereira a história foi diferente. Em 2014, eles se apaixonaram por Oriza, uma jovem com autismo que, por meio do processo de adoção, hoje faz parte desta família que é só amor. Juntos, os três mostram como podemos ser muito felizes convivendo com as diferenças. Recentemente, Thiago também foi diagnosticado com autismo.

Completando três anos neste mês, a Lei 12.955/14 dá prioridade de tramitação a processos de adoção de crianças ou adolescentes com deficiência ou doença crônica. Apesar disso, cerca de 70% das famílias que pretendem adotar ainda optam por crianças sem deficiências ou doenças crônicas, segundo dados do Cadastro Nacional da Adoção do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Na entrevista abaixo, Bartira conta sobre o processo de adoção de sua filha Oriza.

Oriza e Bartira
IA&V - Como foi tomar a decisão de adotar uma pessoa com autismo?
Bartira - Conheci o assunto autismo no tempo de faculdade de Pedagogia, em 1995. Falava-se rapidamente e sem propriedade, pois ninguém dominava o assunto,ainda. Sempre me atraiu o assunto, mas era distante. Um belo dia ouvi uma palestra com uma pessoa maravilhosa, ao ouvi-la, pensei que era especialista na área, mas não, era uma mãe de autista, Marilene Symanski, aí me encantei mais ainda pelo tema autismo. Nunca tinha ouvido de uma maneira tão explicativa e que passava que não era nada de ruim, que era bom o convívio, talvez porque eu já convivia e não sabia, me atraia mais e mais.

Continuei estudando sobre, passaram-se uns 4 meses, e fui convidada para trabalhar na APAE com pessoas com autismo. Ironia, né?! Então, passaram-se quase dois meses e nada da minha aluna Oriza aparecer. Eu ficava curiosa para conhecê-la, o nome chamava minha atenção. Neste meio tempo, meu marido foi trabalhar na instituição como musicoterapeuta.

A Oriza veio a aula. Já achei ela linda. Eu já tinha lido toda a anamnese dela, me emocionei. Fiquei triste com a história dela de muito sofrimento até os 19 anos e a instituição sempre soube e nunca fez nada. Até aparecer uma abençoada assistente social que encarou a briga e tirou ela do seu “curador”.

A aluna era bem intolerante, autismo clássico, não-verbal, usa fralda e muito, mas muito arredia, desconfiada. Pense em uma menina autista que ainda era acorrentada no fundo de um pátio com muita sujeira!!!

De primeiro momento já houve empatia. Passamos os olhos rapidamente, mas havia sentimento. Foi um namoro entre nós três, e ela nos escolheu. Aos poucos fomos estreitando vínculos. Paralelamente, procurava o som do sax que o Thiago tocava. A música que ela gostava que era tocada é “Vagalumes”, da banda Pollo. Ela corria atrás do som, quando encontrava, o contato era rápido com o Thiago, não tinha medo. Chegavamos em casa e ficávamos falando somente nela. O tempo para tomar a decisão e correr atrás foi um mês.

IA&V - Vocês encontraram apoio na família e entre os amigos ao tomar tal decisão?
B - Nós decidimos ser pais da Oriza. Não estávamos preocupados com os outros, e isso incluía a família. Nós éramos os pais da Oriza e ponto. Parece egoísmo, mas não me sinto assim, era certeza do nosso amor por ela, certeza de que o Senhor Deus tinha reservado ela para nós e vice-versa. Ali estava a nossa família aumentando!

Ficamos nervosos, sim, na hora de contar aos nossos pais, mas também, tinha motivo! Nossas famílias se assustaram bastante, pois, não é uma notícia muito comum de se dar e receber. Com o tempo, tudo melhorou, hoje a minha família que convive mais com a Oriza, não vivem sem ela, são apaixonados pela minha filha.

Alguns amigos se afastaram, outros vieram, mas como já disse antes, não nos importava. Não mudou muito os nossos hábitos e costumes, somos bem caseiros, frequentamos a casa de poucas pessoas, ou melhor, duas pessoas somente! Continuamos fazendo tudo normal e o que ainda não fizemos foi por falta de oportunidade.

IA&V - Como foi o processo de adoção da Oriza?
B - Quando conversamos com a equipe técnica do Lar da Criança e Adolescente, onde a Oriza morava já havia um ano e meio, elas ficaram um tanto assustadas e, quem foi conversar foi o Thiago. Agora imagine o quadro: ele tem uma cara de maluco, como homem-bomba, apesar de ser judeu, calmo, fala mansa quase parando (é claro que na época apenas desconfiávamos em tom de brincadeira que ele era autista), foi comunicar a nossa intenção! A assistente social e a psicóloga ficaram assustadas e foram falar com o juiz. Este, então, mandou que liberassem uma adaptação, tudo em ordem verbal e nada no papel, acredito que ele pensou que nós não iríamos aguentar o tranco! Ledo engano dele! Então, começamos. Nos sábados, nós quem íamos até o Lar e passávamos a tarde com a Oriza. Domingo de manhã, trazíamos ela pra passar o dia em casa e levávamos ao Lar à noite. Durante dois meses. Ah, lembrando que a grávida não era eu e, sim, o Thiago. Eu dirigia e ele alagava as ruas chorando sem limites por deixar a filha na instituição. Nestes momentos que desconfiei mais sobre o diagnóstico dele, por não saber lidar com a situação e até egoísmo por não permitir o meu sofrimento .Depois desse tempo ela vinha sábado o dia todo e voltava a noite, vinha no domingo novamente e retornava. Logo começou a dormir. A Oriza nunca se assustou ou teve dificuldades para entrar em nossa casa, sempre se portou como sempre tivesse sido sua! No mês de dezembro, o juiz permitiu passar as datas festivas. Quem organizava datas e horários era a equipe do Lar, então dia 20 de dezembro levamos a Oriza para a nossa casa. Estou chorando só de relembrar, pois naquele ano passamos o primeiro natal em família!

Oriza
Precisávamos levá-la ao Lar no dia 28 para buscar novamente no dia 30. Levamos como o combinado e, muitas lágrimas depois, e voltamos desolados para casa. Era final de tarde, não dormimos aquela noite, a casa estava vazia. Esperamos o horário do Lar abrir e fomos até lá buscar a Oriza de volta. Não era o dia estipulado, mas a equipe deve ter visto o nosso desespero e liberou a volta da Oriza pra casa. Neste meio tempo o juiz liberou que ela ficasse nas férias, junto de nós, era tudo o que nós queríamos! Na metade de janeiro, uma juíza realizou algumas audiências no Lar e nós devíamos estar lá. Nos pediram para ir às 8h da manhã. A querida da juíza nos atendeu por último, às 17h, e ainda por cima perguntou o que nós queríamos. Ela deu uma entrevista na RBS sobre a nossa adoção - sem saber muita coisa - porque o juiz foi embora e ela quem assumiu no lugar dele. E entrevista não foi transmitida e só nos fizeram de bobos, pois a juíza se fez que não nos conhecia e no final mandou devolver a Oriza para a instituição. Imagina o quanto precisei segurar o Thiago, fechar a boca dele com as intolerâncias. Era hora de eu ser a louca, simplesmente falei pra equipe que até levaríamos ela de volta ,mas como somos acostumados a acampar [risos], acamparíamos no pátio do Lar! Não preciso falar que ela não voltou para o Lar, está até hoje aqui conosco.

Quando iniciou a adaptação, era agosto de 2014 e durou até aquele dezembro. Entramos com o pedido de adoção pela Defensoria Pública no início de 2015. Em maio de 2016 saiu a sentença, só teve uma audiência, onde o juiz e o promotor foram muito humanos e amáveis com a situação, uma audiência bem informal, foi bonita. Em setembro nos chamaram para buscar o mandado e levar paro o cartório fazer a nova certidão de nascimento. Podemos dizer que a trajetória de uma adoção é dolorosa e demorada demais!

IA&V - Como é a rotina da Oriza?
B - A Oriza frequenta o Espaço azul na APAE, três vezes na semana, até o meio da tarde. Após o atendimento, o transporte deixa ela na casa da minha mãe, aquelas bênçãos que são chamadas de vó, até eu sair da escola. De manhã fico com ela, consegui a redução de carga horária. O objetivo de ir na APAE é pra ela ter mais socialização, já que nossa família não sai muito de casa. Em casa é o lugar onde nos divertimos muito com a Oriza, onde ela tem muita estimulação sensorial e de tolerâncias. Nossa casa é um loft, não tinha filhos pra nossa história,e o nosso quarto acabou de baixo da escada porque ela precisava ter um só pra ela. E, mesmo assim,a gente apronta muitas bagunças com a filhota.

IA&V - O que a Oriza ensinou a vocês?
B - A chegada da Oriza nas nossas vidas foi tão especial que a gente não sentiu as mudanças. Antes, nós passávamos assistindo filmes, comendo lanches, vida bem de boa, agora continua de boa, só preciso fazer comida todos os dias, mas continuamos vendo filmes. Ela é parceira pra tudo.

A minha filha me trouxe mais alegria, maturidade e me fez descobrir que eu sou capaz de ser mãe. Eu achava que nunca seria uma boa mãe, por ser meio forinha, “lokita” assim, avoada, mas eu sou uma mãe muito aplicada, combinamos muito bem como mãe e filha. Continuo doida, mas nos aceitamos como somos, nos respeitamos, porque eu também tenho as minhas limitações. É isso que as pessoas não entendem: todos temos as nossas limitações! É muito maravilhoso poder cuidar dela, dar amor e carinho, desde a hora do banho, é um momento singular, onde acontecem muitos estímulos e respostas, pois ela tem um relacionamento de amor com o chuveiro. É valioso demais saber que você está cuidando e amando um ser que tinha uma vida de dor e sofrimento e agora ela sorri, retribui o carinho que recebe, é feliz! A verdade desta história é que é ela quem nos traz bênçãos, ela quem nos alegra e nos ensina a cada dia. É maravilhoso conviver com a filhota da perna cambota!

IA&V - Quais os principais obstáculos que você já teve que enfrentar com sua filha em relação à inclusão?
B - Como a nossa cidade é pequena, todos se conhecem e já sabem da nossa história, então, na verdade, eu tive mais ajuda do que dificuldades. Nos lugares onde vamos, ela é bem recebida, vai em aniversários comigo, quando vou ao mercado e ela vai junto, não desce, mas o pessoal do mercado já conhece ela e sempre estão olhando pra ver se tá tudo bem enquanto faço as compras. Ai de mim se não comprar coca-cola! [risos] No geral, sem dificuldades.

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